A complexidade de se escrever sobre a espiritualidade de uma maneira não dogmática ou desvinculada de uma doutrina denota um exercício extremamente desafiador, já que é comum, tanto para os leitores quanto para próprio o escritor, recorrer a um pacote anterior de pressupostos culturais, religiosos ou místicos para servir de base analítica ao proposto informativo.
A final de contas, como se pode relacionar espiritualidade, termo tão global e específico, tão esotérico e genérico, à técnica do Feng Shui? Para alguns, isso até pode ser muito comum; entretanto, ao se averiguar estritamente as tradições do Feng Shui Clássico, essa conexão pode não estar assim tão evidente.
A palavra espiritualidade significa algo que tem qualidade ou caráter espiritual, e esta última, por usa vez, relativa ou pertencente ao espírito (por oposição à matéria), algo relacionado a uma religião ou ao devoto desta, ou ainda, algo místico, sobrenatural. Bem, por conseguinte, fica fácil entender a ligação entre o Feng Shui e o taoismo, se levarmos em conta esse contexto. Cabe, nesse instante, um parêntese: por quê se salienta tanto a semântica das palavras num texto que poderia ser escrito de maneira mais fácil, mais direta e sem tantos floreios? Simplesmente porque o uso generalizado de termos científicos ou pelo menos de uso mais técnico para se descrever “coisas” da espiritualidade traz um problema: conceitos equivocados e imprecisos de algo que, em essência, já é de difícil digestão além dos grupos fechados.
Comumente ouvem-se termos inusitados, como vibração sutil, ou mesmo “a energia espiritual vibra mais rápido que a do corpo”. Interessante notar a ineficácia do termo, já que por convenção, com a vibração tem-se a idéia de freqüência e ser mais ou menos sutil, algo relacionado à densidade; em resumo, seria o equivalente a dizer que a temperatura de hoje está em 26 maçãs. Esquisito, não?! Da mesma maneira que é bem mais razoável utilizar os termos sutil ou denso para descrever as condições dos corpos ou eventos espirituais (e não vibração), o mesmo princípio deveria ser utilizado ao se relacionar outras áreas: por exemplo, mesmo sendo de uso comum, na verdade não existe uma filosofia taoista, budista, etc, mas sim uma sabedoria, já que para haver a dita filosofia, seria preciso um fundo baseado na dialética, ou seja, um embate de forças e pontos de vista que determinaria, em suma, verdades relativas e momentâneas, mais do que verdades absolutas ou visões de mundo próprias de uma ótica espiritual ou religiosa (a sabedoria).
Dai vem um dos pontos mais criticados pela visão científica / filosófica: os iniciados nas artes espirituais utilizam muitas vezes os termos cunhados pelos cientistas sem ao menos saber qual é o significado e o conceito por trás das palavras; ou seja, utilizam-nas simplesmente por que ficou comum usá-las, esotericamente, dessa maneira.
Induz-se, nesse momento, o outro questionamento: mas o que isso tem a ver com o universo do Feng Shui? Muito, na verdade. Pelo menos três tópicos fundamentais podem surgir, abarcando o fundamento dos significados:
• A validade ou não de tentar sobrepujar o Feng Shui ao status de ciência, por vezes substituindo a palavra pelo seu ancestre Kan Yu ou adicionando os termos Clássico ou Tradicional quase como sinônimos de um Feng Shui Científico (e em oposição ao cunho místico e deveras ritualístico encontrado nas versões modernas);
• Como se processam os efeitos das correções num local analisado, no complexo sistema de forças expostos no binômio construção+pessoa. Existiria uma comunicação (enquanto linguagem), que conecta o sentido formal e conceitual de uma cura ao seu oposto, ou seja, à doença, ao sentido de anomalia ou mesmo ao problema vivenciado pelos moradores / usuários de um espaço? Seria esse ajuste realmente fundamental?
• Se existe um fundo espiritual na colocação das curas no Feng Shui. Seriam os efeitos dessas harmonizações no ambiente um indício da conexão da técnica em si com um sentido energético-sutil, quiçá transcendental?
Sobre o primeiro aspecto, é possível considerar dois pontos de vista. Se a intenção é diferenciar o Feng Shui antigo da sua visão moderna (Chapéu Preto e variações), o termo científico seria até passável, mesmo que genérico. Mas se o foco for exaltar o sentido mais original da palavra ciência, evidencia-se um equívoco quase falacioso. Por quê o Feng Shui seria uma ciência? Por acessar uma sabedoria ancestral ou utilizar combinações de números em algumas de suas escolas? Ou seria por ser, aparentemente, mais lógico e por se basear numa metodologia coerente ao paradigma contemporâneo? Pela simples constatação dos efeitos, diriam os consultores mais crédulos ao sistema. Mas é interessante observar que mesmo tal condição é passível de crítica. Será que todas as casas Wan Shan Wan Shui são realmente boas para prosperidade e bom para relacionamentos e saúde? Os efeitos de uma combinação 5-2 num quarto sempre serão de doenças ou acabarão em tragédias? Um estudioso informado compreenderá que não, que essas premissas dependerão de uma série de outras circunstâncias, como os aspectos formais externos, os usos internos das Estrelas Wang, a relação dos Ming Guas na combinação, as relações com as Estrelas Tempo, com o Mapa Ba Zi dos moradores, e ainda, e mais importante, a interação pessoal com as probabilidades (tendências de uso pelas reações psico-emocionais). Ou seja, essa complexidade de possibilidades e circunstâncias não é uma comprovação científica, mas sim uma constatação individual ou de um pequeno grupo (o que, a priori, tem relevância nas pesquisas humanas, mas não em exatas). Assim, o máximo que se poderia esperar do Feng Shui seria o avanço a uma metodologia científica (que difere do termo ciência per si), o que já ocorre com o esforço de alguns colegas brasileiros e pesquisadores em território estrangeiro.
Por esse viés, o Feng Shui Tradicional possui uma fonte similar aos outros métodos místicos: de que algo funciona por meio de pressupostos ou mesmo crenças, sejam eles míticos (conhecimento original atribuído a figuras como Fu Xi, Da Yu, Jiang Da Hong, entre outros) verdades metafísicas (“as Estrelas, representadas pelos números do He Tu e Luo Shu possuem personalidades que influenciam no comportamento do homem”) ou mesmo dogmáticos (“as únicas verdadeiras escolas de Feng Shui são as que se originaram do Yi Jing”; “o pergaminho Qing Nan Jing é o maior clássico sobre o Xuan Kong”).
Dessa maneira, o Feng Shui é muito menos ciência e mais arte. Uma arte sensível que envolve, naturalmente, técnicas analíticas, mas ainda assim conectadas a uma percepção cognitiva comum em outrora e que agora se salienta na visão holística moderna (e por que não dizer de cunho espiritualista?).
O segundo tópico se processa no questionamento de que a correção de um ambiente pode ter uma condição de linguagem. Mas o que seria isso? Para ilustrar melhor, utilizar-se-á o seguinte contexto: a maneira como o conceito de harmonização mudou na evolução histórica do Feng Shui.
A noção de intervenção energética de um ambiente (não considerando os rituais de consagração e purificação chineses) se baseava somente em estímulos através de mudanças no fluxo do Qi (mudanças de portas, aberturas, caminhos, etc) em seus dois aspectos básicos: Fan (posicionamento) e Wei (direcionamento). Basicamente, é o que hoje alguns consultores denominam como intervenções estruturais.
Com o aumento da complexidade urbana, a substituição das casas pelos prédios, etc, muitas correções que se baseavam em Fan Wei se tornaram difíceis de serem realizadas. Nas primeiras décadas do século XX, um mestre de Feng Shui lançou uma idéia até então inovadora, quase radical: se não é possível mudar o ambiente pelo fluxo, tenta-se, por conseguinte, mudar a percepção (enquanto significado) dos moradores em relação a esse espaço. E para incrementar o fator cognitivo, um objeto é inserido como representação máxima dessa mudança de perspectiva. Naturalmente, valores metafísicos são adicionados ao objeto em questão, reforçados, principalmente, pela teoria do Wu Xing. Chamou-se essa abordagem de Jie Hua.
Prioritariamente, Jie Hua se estruturaria em dois aspectos, quase uma tradução de seu significado: ser correto de maneira prática e de maneira ritualística. Em outras palavras, não seria o objeto em si que efetuaria a harmonização, mas a maneira com a qual a mesma se conecta em significado simbólico (expressado na forma e na função mística) via usuário, ao local. Tendo isso em vista, seria ainda necessário para o homem que esse objeto tivesse uma conexão prática no uso cotidiano ou pelo menos que não gerasse desconfiança, repulsa ou mesmo um problema. (“a cabaça dourada terá que ser colocada nesse ponto, queira o seu marido ou não!!”).
É interessante observar que a transformação do símbolo ao status de “cura” acaba denotando uma total inversão de valores, já que um simulacro passa à agente principal, em vez do ser humano. A função Jie Hua transforma-se, enfim, de representação icônica à aspirina transcendental reforçada pela retórica dos 5 Elementos. Mas funciona e muito bem!, diria o consultor fervoroso. Naturalmente, a observação não é relativa à eficácia do sistema, mas a sua estrutura conceitual. Tais “curas” terão natural repercussão positiva, caso a peça supervalorizada consiga gerar massa crítica suficiente (seja pelo cliente ou até pelo consultor) enquanto significado, tornando-se o contraponto e complemento da suposta área em que está uma combinação nefasta de Estrelas Voadoras ou um portento “letal” do Ba Zhai. Dessa forma, quanto mais pessoas usarem essas representações ao longo da história, mais reforço semântico (no sentido harmônico) existirá da próxima vez em que ocorrer uma intenção ritualística similar. Assim, é provável que tanto a evolução das teorias quanto a exaltação das curas estejam intimamente conectadas e estimuladas pelo que Rupert Sheldrake chama de Campo Morfogenético.
Por conseguinte, usando o conceito de karma (não da maneira comumente divulgada no Ocidente – de algo ruim), mas somente se levando em conta seu aspecto original, a partir do radical khir (ação através da compreensão), não seriam as probabilidades que se manifestam num ambiente apenas um potencial de manifestação das experiências geradas pela Consciência, algo como atratores kármicos de aprendizado? Portanto, dever-se-ia “curar” isso? Ou somente usá-los como ponte para se chegar à compreensão?
Conclui-se o artigo pela análise do terceiro tópico: a possibilidade da harmonização de Feng Shui possuir um papel espiritual ou se ligar de alguma maneira a este. Averiguou-se no decorrer do texto a substituição explícita (por uma questão didática) da palavra espiritualidade por um dos seus aspectos, a informação. Entretanto, mesmo ao se abordar uma questão diretamente pertinente a algo do “espírito”, da alma, em suas características energéticas específicas, como aura, campo bioelétrico (duplo etérico), chacras, etc, e as relações destas com o ambiente e com outras consciências, o papel do Feng Shui não pode ser separado da estrutura de uma linguagem, já que tanto no sentido avaliativo quanto ao se postularem as recomendações, isso não deixa de ser uma visão arquetípica do lugar.
Isto posto, o Feng Shui Tradicional não resgata entidades perdidas ou melhora subitamente as qualidades espirituais de uma construção com a inserção de curas paliativas ou mesmo estruturais; de maneira análoga, um local poderia estar plenamente harmonizado, com excelente ancoragem nas Estrelas 8-Montanha e um belo Ming Tang no 8-Água, e ainda assim, estar com uma egrégora péssima em termos espirituais. O que o Feng Shui pode proporcionar são novas referências de perspectiva ao homem; a este sim, caberá a função de reconhecer / reforçar as energias saudáveis existentes, transformar condições não adequadas ao seu bem estar ou mesmo sucumbir às dificuldades, retroalimentando egrégoras desafiadoras do local ou mesmo da sua própria conduta de vida. Para isso não há cura externa que resolva, além da própria índole.
Assim, independentemente dos variados significados que podem ser atribuídos à Espiritualidade, o Feng Shui torna-se mais do simples técnica para acessar, equalizar ou otimizar tal energia; é, em suma, uma possível representação de um devir espiritual. Um vir a ser estrategicamente camuflado no maior dos desafios: o aprendizado cotidiano, nas pequenas coisas e circunstâncias...
E dessa maneira o Feng Shui se torna pleno: um Feng Shui que ousa se “desconstruir”, que descongela teorias inabaláveis em complexas caldeiras contemporâneas, que aceita a dialética por não tentar ser nem tradicional nem moderno, nem sofredor nem inquisidor, apenas mais um representante de um Zeitgeist que urge em meio a tempos difíceis...
Mais do que um Feng Shui Científico ou Espiritual, está ai o vislumbre de um Feng Shui Filosófico...
Artigo publicado no informativo Kan Yu - Edição Verão 2009